segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Incompatibilidade de agendas


Quando eu era criança eu assistia à Sessão da Tarde. Meus companheiros das tardes durante a semana eram Daniel San, Mussum e Zacarias coando café na meia pro Dedé beber e Brokie Shields divando na lagoa azul. As tardes na casa da minha vó transcorriam em um ritmo bucólico, quase que com o tempo pairando num calor senegalês.

Depois do filme eu e meus 8 primos tomávamos café da tarde. Quase sempre pão amanhecido “ressuscitado” na manteiga e frigideira bem quente. Cada um tomava uma caneca de leite (contada por cabeça), a minha irmã quase sempre vendia a dela. Garota esperta. E sabe, tá pra nascer café da tarde mais gostoso que esse. Nem o banquete vespertino do Ritz de Santiago do Chile me fez ser mais feliz do que o pão fritinho da casa da minha avó.
E era lá que tudo acontecia. As brincadeiras, lições de casa, conversas no quintal... E a gente foi crescendo assim, à base de Karatê Kid e filmes do Didi, e no final das contas foi tudo muito bom, tudo deu certo, nós crescemos e só o que guardamos foram lembranças boas da casa da vó Ina. E eu tinha uma vontade imensa de poder proporcionar essas tardes de “ócio criativo” pros meus filhos. Mas gente, isso não me pertence, confere?

Com mãe e sogra far far away, marido viajando mais do que o esperado e eu aqui, sendo mãe que trabalha, faz espanhol e vai na academia, como faz pra dar tarde de ócio criativo pras criança tudo gente? Sério, o Theo andou ficando 12 horas seguidas na escolinha no final do ano passado, por motivos de eu estar sem empregada e fechando projeto no Banco. O Lucca passava o dia todo sozinho, jogando vídeo game com pessoas desconhecidas naquela invenção do capeta que chamam de Playstation network. Eu estava cansada, eu estava mal, eu queria que meus filhos comessem pão fritinho e eu queria jogar o PS3 pela janela.

Então fiz a única coisa que mães paulistanas que trabalham podem fazer. Enchi o dia deles de atividades. O Lucca tem inglês de segunda e sexta. Terça e quinta os dois tem atividades no Clube, o Theo faz baby gim, uma aula na ginástica artística que desenvolve o equilíbrio, agilidade e coordenação motora, que a pessoa tarra só andando na ponta do pé, e eu achando que a culpa, é claro, era minha. O Lucca faz futebol. Os dois chegam em casa parecendo que rolaram durante 2 horas no chorume do chão da balada. Daí tomam banho e dormem. Cabe ressaltar que toda essa epopeia de atividades envolve uma logística providenciada por mim, com direito a motorista, empregada, os dois sozinhos no clube com a empregada, uma gastrite recém adquirida e muita fé em nossa senhora do bom parto, amém.
E eu chego em casa e fico tentando acordá-los em vão aproveito pra descansar e me preparar pro dia seguinte. Quartas e Sextas é minha vez de ir pra academia, então chego em casa depois das 10, e eles já estão dormindo. E eu fico me sentindo mãe de merda até umas 2h da manhã, quando finalmente o sono chega.

Está rolando uma incompatibilidade de agendas lá em casa. Quando estou em casa eles estão dormindo, quando estou no trabalho eles estão nas atividades, quando eu estou dormindo eles estão dormindo (ou jogando Playstation com desconhecidos de madrugada e ficando 1 mês de castigo por isso)... Eu me pego pensando se estou fazendo a coisa certa. Se não era melhor que eles ficassem em casa assistindo o Daniel San pintar a cerca e encerar o carro como se não houvesse amanhã, com o senhor Miaggi rindo litros por dentro. Gente, me deixa, é um clássico e está passando hoje na sessão da tarde! (alguém se lembra dele fantasiado de chuveiro na festa da escola? Daniel San GÊNIO)

Com tantas dúvidas na minha cabeça, resolvi recorrer à única pessoa neste mundo que me entende total e plenamente. Liguei pra minha mãe:
- Oi mãe, tudo bem?
- Tudo filha, e você?
- To bem mãe... Quer dizer, mãe, eu não to bem, to na merda, to terceirizando a criação dos meus filhos pra professores de inglês, técnicos de futebol e empregadas. Chego em casa e eles já estão dormindo, não consigo mais jantar toda noite com eles, será que eu estou fazendo a coisa certa?
- Ai filha, eu passei pela mesma coisa. Lembra que quando você tinha uns 11 anos eu trabalhava em 2 hospitais e dava aula a noite? Quase nunca jantava com vocês. E as sextas-feiras eu fazia aula de pintura, que era o único lazer que eu tinha, e as vezes eu te levava. Não é fácil, mas passa, e vocês três estão aí, bem, tocando suas vidas, sem maiores traumas.
Pausa dramática nessa parte da conversa. Gente, eu JU-RO que não lembro dessa ausência, de toda essa história de nunca jantar com minha mãe, das aulas a noite... A única coisa que eu lembro é das aulas de pintura, que eu amava.
- Mãe, ou eu fiquei com sérias sequelas mentais e apaguei essa parte da minha vida, ou realmente o que importou pra mim foi a sua presença, o tempo que eu tinha com você, as coisas que fazíamos juntas...
- Filha, relaxa. Você está fazendo um bom trabalho.

Pronto, se minha mãe disse que estou fazendo um bom trabalho eu acredito.

E as coisas começaram a se ajeitar. Comecei a acordar os meninos mais cedo, pra aproveitar com eles as manhãs, já que a noite eles já deram “Game Over”, tomamos café juntos e eles me contam as aventuras no clube no dia anterior, assim me sinto menos culpada e eles adoram contar as peripécias deles, estão crescendo mais independentes e responsáveis.
Além disso eu aprendi a bloquear o PlayStation.
Sou mãe, sou trabalhadora, sou marombeira e faço pão fritinho pros meus filhos no final de semana. Beijinho no ombro pra quem julga mães que trabalham.
PS: Gente, to com saudade dos comentários, de modos que comentem e terão meu eterno amor e gratidão ok?