sexta-feira, 27 de março de 2009

Boizinho de Chuchu




O ano de 1948 foi um ano bissexto. Em 1948 o Corinthians venceu o Nacional por 4 a 2. Nasceram Mikael Barishinikov, Hans Donner e Al Gore. Em 1948 minha vó casou com o meu vô. As mulheres usavam cabelos presos com grampos aparentes, batom vermelho e ainda não trabalhavam fora de casa. Na verdade a maioria delas não chegava nem a estudar.

Minha vó me ensinou a fazer roupas de retalho pras minhas bonecas; a fazer bolachinha de nata; a tomar leite batido com goiabada, a gostar de gatos; me ensinou a espetar palitos no xuxu pra ele virar um boi; me ensinou que se eu arrancasse as folhas da samambaia dela ela ia me dar tamancada na bunda (e depois uma abraço apertado e pão fritinho com manteiga); me ensinou a brincar de pega latinha, ovo chôco, STOP, pular corda e comer melancia cuspindo só o caroço no chão.
Minha vó me ensinou a ter paciência, a saber esperar a minha vez na fila do sagu; me ensinou a fazer esfoliação com fubá e iogurte; me ensinou a ser vaidosa.

Apesar de eu frequentar muito menos a casa da minha avó, o tempo que eu morei lá foi quando eu aprendi todas essas coisas tão importantes na vida da gente, muitas vezes mais importantes do que tudo que a gente aprende pro resto da vida. Com ela eu aprendi a ser gente, e a ser feliz com um boi de xuxu. Minha vó tem aquela carinha de vovó, cabelinho branco e pelos de gato grudados no casaquinho de lã e, por incrível que pareça ela me ensina coisas importantíssimas até hoje.

No último final de semana eu fui na casa da vó pela primeira vez depois que a Ervilha foi oficialmente descoberta por mim. Fui avisada de antemão que ao saber da Ervilha A vó já tinha perguntado quando ia ser o casamento. Cheguei lá preparada pra vomitar um discurso moderninho sobre como a equação gravidez+casamento (necessariamente nessa mesma ordem) não altera o produto Ervilha (já existente), produto que no caso em tela vai levar as alianças pro altar quando eu e o Big nos casarmos!

Ela estava na cozinha de avental igual ao que ela deu pra mim no dia do meu noivado. Me olhou com aqueles olhos de aguinha de quem já tem mais de 80 anos, me deu aquele abraço de vó e me disse bem baixinho que queria saber se eu ia fazer igual a ela. Mas igual a ela o que? E foi então que eu soube que em 1948, que foi um ano bissexto; no qual o Corinthians ganhou do Nacional por 4 a 2; ano de nascimento de Mikael Barishinikov, Hans Donner e Al Gore; minha vó tinha casado grávida de 4 meses, numa terça-feira, duas semanas depois de ser expulsa de casa pela minha bisavó. Ninguém da família dela foi ao casamento, ela estava sozinha, completamente sozinha. Quer dizer, ela me disse que sabia que não estava sozinha, que nunca mais estaria, ela já tinha a ervilinha dela na barriga.

A ervilinha dela só foi conhecer a mãe da minha vó quando tinha 8 meses, e assim que a mãe da minha vó viu a ervilinha sentiu uma culpa tão grande, que durou pro resto da vida. A ervilha da minha vó não enxergava, e na cabeça da minha bisavó ela não enxergava pra não ter que ver todo o sofrimento que a mamãe dela tinha passado.




Durante anos Angelina sofreu com o preconceito e a crueldade característicos de uma cidade de interior, mas não se abalou. Virou costureira, criou os filhos e ensinou os oito netos a fazer boizinho de xuxu. E agora vai ensinar a (ou o) ervilha também.




A última coisa que minha vó me ensinou foi que por trás da palavrinha mãe, existe uma palavrona, coragem.




Mas mesmo assim ela perguntou quando vai ser meu casamento... Coisa de vó!